quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Novos Contos da Montanha


Miguel Torga



O Pastor Gabriel

(...)Em silêncio e sem se mexer, deixou-a passar para a adega, que era ao fundo, numa loja contígua. Mas apenas sentiu desandar a torneira da pipa e a espuma do tinto a ferver dentro do barro lhe fez cócegas na garganta, pediu humildemente:
- Minha ama, dê-me uma pinga!
- Dou. Anda cá bebê-la ...
Ergueu-se num pronto, saltou por cima do gado, entrou no armazém, recebeu a pichorra, levou-a à boca e começou a consolar a alma. De repente, sem mais nem para quê, a moça, calada, dá-lhe um empurrão à vasilha com a ponta do dedo. De respiração afogada e ainda engasgado, a tossir, relanceou-a toda. Ao machio, a senhora morgada !
E nada mais simples: pousou a caneca e dobrou a rapariga sobre uma facha de palha.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Sonetos - Charneca em Flor


Florbela Espanca




Espera...




Não me digas adeus, ó sombra amiga ,
Abranda mais o ritmo dos teus passos ;
Sente o perfume da paixão antiga ,
Dos nossos bons e cândidos abraços !


Sou a dona dos místicos cansaços ,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços ...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga !


Teu amor fez de mim um lago triste :
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste ,
Quanta canção de ondinas lá no fundo !


Espera ... espera ... ó minha sombra amada ...
Vê que pra além de mim não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo !...

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Praça da Canção



Manuel Alegre







Canção Terceira




Quando desembarcarmos no Rossio
canção
vão
dizer que a rua não é um rio
vão apressar o teu navio
carregado de vento carregado de pão.

Dirão que trazes tempestades
dirão que vens de espada em riste
e que foi sangue sangue o vinho que pediste.
Vão vestir-te com grades
que é um vestido para todas as idades
na Pátria dos poetas em Rossio triste.





( pag.65 ed.EA )

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O Cheiro da Madeira


A.M. Galopim de Carvalho




Exercício de memória, sem a preocupação do relato rigoroso do cronista, O Cheiro da Madeira procura ser um ensaio de reconstituição de um viver colectivo do segundo quartel do século XX, na cidade e nos campos de Évora. Ficcionando ao sabor da sensibilidade de hoje, A. M. Galopim de Carvalho conserva, no entanto, os cheiros, os recortes e os matizes com que os sentidos os gravaram em recantos da memória de onde forma retirados. Lê-lo é estar lá, com os olhos, com as mãos. A cheirar, a rir, a chorar.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

O Retrato de Dorian Gray


Oscar Wilde



Romance fascinante sobre a imortalidade, a perfeição, a juventude eterna e outras impossibilidades
Publicado em 1890 – com uma segunda edição do ano seguinte, a que o escritor acrescentou seis novos capítulos e um prefácio –, “O Retrato de Dorian Gray” chocou a hipócrita sociedade vitoriana que viu nele um espelho dos seus defeitos, alheio àquelas que considerava serem as suas virtudes. A crítica apressou-se a envolver o romance num escândalo que passou de literário a social quando a relação de Wilde com o Lord Alfred Douglas se tornou pública (em 1891). No prefácio à segunda edição, Wilde distancia-se da polémica (“Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo”) e desencoraja os que procuravam encontrar no seu ciclo de amizades as figuras inspiradoras das suas personagens: “O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.”

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

A Montanha Mágica


Thomas Mann


O que devo eu então dizer sobre o próprio livro (Montanha Mágica) e ainda por cima, como deve ser lido? O começo é uma exigência muito arrogante, a dizer que se deva lê-lo duas vezes. É claro que essa exigência é retirada imediatamente para o caso de que na primeira vez se tenha ficado entediado. A arte não deve ser nenhum trabalho escolar nem dificuldade, nenhuma ocupação contre coeur, mas sim deve alegrar, entreter e animar e aquele sobre o qual uma obra não exerce esse efeito então este deve deixar a obra de lado e voltar-se para outra. Mas quem chegou uma vez até o final com a “Montanha Mágica” então eu aconselho a lê-la mais uma vez, pois seu feitio particular, seu caráter como composição traz consigo que o prazer do leitor aumentará e se aprofundará da segunda vez, - como se deve já conhecer uma música para poder gozá-la de acordo.

Extracto de Conferência apresentada por Thomas Mann em Maio de 1939 aos estudantes da Universidade de Princeton

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

As Rosas de Atacama


Luis Sepúlveda


Assim nasceu o presente livro, As Rosas de Atacama, “Histórias marginais” (aliás o título da edição original espanhola), e também histórias de marginais, os relatos, quase sempre curtos, que compõem esta obra têm os ingredientes a que Luis Sepúlveda habituou os seus leitores desde O Velho Que Lia Romances de Amor: a defesa da vida e da dignidade humana, a luta pela justiça, o elogio dos valores ecológicos, o exotismo como afirmação de que os sonhos são os mesmos em todos os lugares da Terra.
Em Sepúlveda, a realidade supera sempre a ficção. Daí que este extraordinário contador de histórias continue a servir-se da sua condição de andarilho das cinco partidas do mundo para nos oferecer, em lampejos de génio, o retrato insuperável dos homens e das mulheres que, no anonimato, ajudaram, ajudam e ajudarão a construir o verdadeiro rosto da História.

sábado, 11 de agosto de 2007

Seara de Vento


Manuel da Fonseca


“- Pois é verdade… Isto deu uma grande volta… Aquela raça dos lavradores antigos acabou-se… Os de hoje, se muito têm, mais desejam. Moram nas vilas, põem casa às amantes na cidade, não dão um passo sem ser de automóvel, inventam festas, não há cinemas nem teatros a que faltem. E para um estadão destes é preciso dinheiro e mais dinheiro. Nunca se fartam. Por isso é que eles açulam os feitores às canelas do pessoal, que nem o deixam respirar. Agora é tudo à má cara e de relógio na mão.
Júlia curva-se, movendo a cabeça.
- Uns tão ricos e outros sem nada… Até devia haver uma lei contra isto.
- Haver o quê?!... Estás parva. Pois se os ricos é que fazem as leis!”

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Sábado sem Sol


Romeu Correia

Era um nadador. nadara toda a tarde e toda a noite e dera à praia de madrugada. Estava morto. Mas parecia ainda a nadar: fora interrompido pela morte quando nadava. O corpo enregelado mantinha ainda na perfeição absoluta, o momemto supremo do braço com a mão em concha, indo além da cabeça, para puxar a água ao longo de si.


Dera à praia naquela madrugada como se fora esculpida em pedra a estátua do Nadador.




* este post é dedicado ao prof. Manuel Catarino que fez nascer em mim o gosto pela escrita.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Cinco Dias, Cinco Noites


Manuel tiago




Longe das veredas e povoados, a serra ondulava pedregosa e nua. Só aqui e além, ao fundo das encostas ou por detrás dos cabeços, repousavam manchas macias de terra lavrada. Donde e quem vinha lavrá-la parecia mistério em sítio tão desolado e ermo. Toada a tarde caminharam, o Lambaça adiante, André atrás. Nem uma só vez avistaram um ser humano. Não fora o sol derramando luz no ar e nas coisas, não fora o ar límpido e leve, aquele deserto e aquele silêncio seriam intoleravelmente opressivos. Assim, a serra abria-se à intimidade, numa carícia tranquila e confiante.(...)