quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A Salvação de Wang-Fô e Outros Contos Orientais



 

Marguerite Yourcenar




O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling erravam pelas estradas do reino de Han.
Avançavam devagar, pois Wang-Fô parava de noite para comtemplar os astros, de dia, para olhar as libélulas. Ìam pouco carregados, pois Wang-Fô amava a imagem das coisas e não as próprias coisas, e nenhum objecto do mundo lhe parecia digno de ser adquirido, excepto pincéis, boiões de laca e de tinta-da-china, rolos de seda e papel de arroz. Eram pobres, pois Wang Fô trocava as suas pinturas por um caldo de milho miúdo e desprezava as moedas de prata. O seu discípulo Ling, vergado ao peso de um saco cheio de esboços, curvava respeitosamente as costas como se carregasse a abóboda celeste, pois aquele saco, aos olhos de Ling, ía cheio de montanhas sob a neve, de rios pela primavera e do rosto da lua no Verão.
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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Conversas com Saramago






José Carlos de Vasconcelos






ESTE LIVRO REÚNE SEIS ENTREVISTAS COM JOSÉ SARAMAGO, datadas de Abril de 1989 a Novembro de 2006,saídas três delas no JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, e as outras três na Visão. Em mais de meio século a escrever para jornais e revistas, é a primeira vez que publico em livro alguns desses textos. Quando em 1966 entrei para a redacção do Diário de Lisboa, após vários anos de colaboração e/ou coordenação em imprensa local, cultural e associativa, e de publicação por aquele prestigioso vespertino de reportagens que por minha própria iniciativa fiz, o meu primeiro trabalho de fundo foi uma outra (longa) séria de reportagens sobre o tema, então muito na berra, "Como viveremos no ano 2000?". (...)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

História da Minha Vida





Giacomo Casanova





Foi dois dias depois da minha chegada a Fontainebleau que visitei sozinho a corte. Tinha visto o garboso rei ir à missa, toda a família e todas as damas da corte, que tanto me surpreenderam pela sua fealdade como me tinha surpreendido pela sua beleza as da corte de Turim. Mas ao ver uma surpreendente beleza entre tanta fealdade, perguntei em certo momento como se chamava a dama.
- É Madame de Brionne, cavalheiro, mais prudente ainda que formosa. Não só não corre nenhuma história sobre ela, senão que jamais deu o menor motivo para que a maledicência pudesse inventar uma.
- Talvez não se tenha sabido de nada.
- Não, cavalheiro, na corte sabe-se tudo.
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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Auto da Barca do Inferno & Auto da Alma







Gil Vicente






O primeiro entrelocutor é um Fidalgo que chega com um Page que lhe leva um rabo mui comprido e na cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o fidalgo venha.

DIABO-

À barca, à barca, houlá!
Que temos gentil maré!
- Ora venha o carro à ré!

DIABO-

Feito, feito!
Bem está!
Vai tu muitieramá,
atesa aquele palanco
e deseja aquele banco
para a gente que vinrá.
(...)