domingo, 31 de julho de 2011

A Volta ao Mundo em 80 Dias




 


Júlio Verne







 
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Mas, no dia 29 de Setembro, as coisas não se passaram assim. O maço de notas não voltou quando o magnífico relógio, pendurado por cima da caixa, anunciou às cinco o fecho do escritório, o Banco de Inglaterra não teve mais opção que passar cinquenta e cinco mil libras pela conta dos ganhos e perdas.
Clara e devidamente reconhecido o roubo, agentes e detectives, escolhidos entre os mais hábeis, foram enviados para os principais portos, para Liverpool, Glasgow, Le Havre, Suez, Brinddisi, Nova Iorque, etc., com a promessa, no caso de sucesso, de uma gratificação de duas mil libras e cinco por cento da quantia que fosse recuperada.
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A Madona








Natália Correia








(...)
-Agora só te falta uma mulher. Concerteza que te queres casar.Tens talvez alguma em vista - insinuei, olhando-te intencionalmente de revés.
Coraste e esclareceste precipitadamente:
- Isso de casamento é negócio que se faz entre as famílias quando somos pequenos. Eu não tive quem me concertasse o negócio.
- Ora, isso não é razão. Hás-de encontrar uma que te agrade - repliquei.
Era evidente que querias afastar do meu espírito a ideia de que haveria um dia uma mulher naquela casa onde eu entrava como uma espécie de loucura que te ía martelar a cabeça. E insististe:
- Os velhos dizem que os casamentos por afeição não dão bom resultado.
Era então isso que pensavas do amor?
(...)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Sonetos Românticos









Natália Correia








Tal a gota no rio - quem na entende?
Tal no gelo um cristal - quem no percebe?
Tal o raro na rosa que rescende
Feita de todas na populosa sebe;

Tal no sono o sonho n'alma acende
Um lampejo do Eterno que a concebe;
Tal Deus à Deusa Mãe a mão estende;
Tal o lótus no lodo a luz recebe;

Quem sou eu, em comum carne detida?
De Além me vem a veia; o tempo a corta
E em vagos versos jorra a luz perdida,

Íntima à Íbis que em ocluso oriente
Do meu ser guarda o cálix: a semente
Imortal do sopro que abre a porta.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Lituma nos Andes






Mario Vargas Llosa









Quando viu aparecer a índia à porta da choça, Lituma adivinhou o que a mulher ia dizer. E ela disse-o, mas em quechua, mastigando as palavras e soltando um fiozinho de saliva pelas comissuras da boca sem dentes.
- O que está ela a dizer, Tomasito?
- Não percebi bem, meu cabo.
O guarda dirigiu-se à recém-chegada, em quechua também, fazendo-lhe com as mão sinal para que falasse devagar. A índia repetiu os mesmos sons indiscerníveis que davam a Lituma a impressão de uma música bárbara.
Sentiu-se, de repente, muito enervado.
- O que é que ela diz?

segunda-feira, 30 de maio de 2011

A Cabeça de Salomé








Ana Paula Tavares







Conta-se que Na-Palavra vivia a sua condição de serpente velha e maldita, guardando o território e a palavra, medindo o tempo na balança de cobre dos antepassados, os guardadores das fontes dos rios no nó do Kassai. Liberto de peso, começava os dias a desenhar na areia o desenho fundador: "Havia uma floresta e dentro dela um lugar único onde nasciam todos os frutos. As árvores expunham, ao vento solto, a sua idade, amarrada em colares delicadamente suspensos pelos troncos. Podiam, mesmo, ver-se os corações de tacula em dias mais claros ou sobre o sopro fresco da tarde."

terça-feira, 17 de maio de 2011

Dizes-me Coisas Amargas como Frutos







Ana Paula Tavares








O Lago


Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Casamento Ardiloso







Cervantes






Segundo  parece, os ciganos e as ciganas vieram ao mundo só para furtar. Nasceram de pais ladrões, criaram-se no meio de ladrões, estudam para ladrões e acabam logicamente por fazer-se ladrões sabidos, trabalhando às quatro rodas, em que a gana de furtar e o acto de furtar são coisas inseparáveis que só perdem com a morte. Assim, uma desta raça, cigana velha que podia ser jubilada na arte de Caco, criou uma garota como se fosse sua neta, a quem pôs o nome de Preciosa e ensinou todas as suas ciganices, embustes e traças de furtar. Esta Preciosa saiu a dançarina mais hábil que existia em todo o reino cigano e a mais formosa e esperta que poderia encontrar-se não só  entre os ciganos (...)

terça-feira, 26 de abril de 2011

Terna é a Noite







F. Scott Fitzgerald








(...)
Era agradável fazer a viagem de regresso para o hotel, ao cair da tarde, sobre um mar tão misteriosamente colorido como as ágatas e as coralinas de infância, esverdeado como o leite fresco, azulado como a água da barreia, escuro como o vinho. Era agradável passar pelas pessoas que comiam ao ao livre à porta das suas casas e ouvir o som estridente dos pianos mecânicos, por detrás das latadas dos pequenos cafés de aldeia. Quando deram a volta à Comiche d'Or e desceram até ao Hotel de Gausse por entre filas sombrias de árvores dispostas umas atrás das outras em muitos tons de verde, a Lua pairava já sobre as ruínas dos aquedutos...

(...)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Corpo Recusado







Luisa Dacosta








Antecipação de Outono

Era exasperante senti-la apargar-se. Fria, insensível ao gesto de afago, só porque lhe travara um entusiasmo. A irreverência fazia parte do encanto adolescente que soubera conservar, mas tornava-a por vezes insuportável, com a mania de viver a vida, respiração a respiração, como se fosse morrer no momento seguinte. A fazer de conta que... Hostil? Alheada? Voluntariamente perdida no vaivém das ondas, no molhe sul, na lira dos mastros da enseada, corrida pelo vento.
(...)

sábado, 2 de abril de 2011

A Maresia e o Sargaço dos Dias









 

Luisa Dacosta





 

Imagem no Espelho



Raiz de pedra,
corpo de vento,
olhos de água.
Assim sou
entre pássaros, flor e mágoa.

terça-feira, 22 de março de 2011

Eurico, o Presbítero






Alexandre Herculano





No recôncavo da baía que se encurva ao oeste de Calpe, Carteia, a filha dos Fenícios, mira ao longe as correntes rápidas do estreito que divide a Europa da África. Opulenta outrora, os seus estaleiros tinham sido famosos antes da conquista romana, mas apenas restam vestígios deles; as suas muralhas haviam sido extensas  e sólidas, mas jazem desmoronadas; os seus edifícios foram cheios de magnificência, mas caíram em ruínas; a sua povoação era numerosa e activa, mas rareou e tornou-se indolente. Passaram por lá as revoluções, as conquistas, toda as vicissitudes da Ibéria durante doze séculos, e cada vicissitude dessas deixou aí uma pegada de decadência. (...)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Coração sem Abrigo







José Jorge Letria








Que dia é hoje? Há quantos dias aqui procurámos abrigo, talvez da chuva, talvez do frio, talvez dos medos sem nome e sem rosto que povoam a noite?
Devias ser tu a velar por mim, mas eu fico de vigília, temendo que me privem da tua companhia, que é a única com que eu ainda conto, e é sempre tão eterna e tão envolvente.
Vá, dorme descansado, que amanhã, uma vez mais, nada teremos de fazer, a não ser deambular pela cidade em busca de coisa nenhuma, passeando  a nossa liberdade de seres indocumentados e sem compromissos de nenhuma espécie. O nosso único compromisso é ir vivendo, eu por ti e tu por mim, como se fôssemos mosqueteiros com um lema romântico para honrar.
(...)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Produto Interno Lírico






 

José Jorge Letria








- Sobre os poetas que inventam

Tenho na mesa uma estrela do mar
e na almofada uma rosa dos ventos,
Tudo me sabe a viagem, mesmo quando
permaneço imóvel, separando  no cais
o centeio e o vinho, a pimenta eo ouro.
Não fui almirante de nenhuma armada
nem grumete de nenhum naufrágio;
fui nau frágil da loucura das ondas,
o albatroz rendido ao chamamento de longe,
a sereia apodrecida nas redes da faina.
(...)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Corpo Invisível






Mário Cesariny







 

A esta hora entre blocos de prédios enevoados
                    a bela mancha diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos
                    braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina                 extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que
                   lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
(...)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Estorvo



 

Chico Buarque




(...)
A garota surge correndo pelas minhas costas e atira-se no pescoço da mãe. Usa uniforme escolar, lancheira amarrada nos ombros e tranças de maria-chiquinha. Minha irmã dá-lhe um beliscão nas bochechas, senta-a nos joelhos e faz cavalo maluco, faz cosquinhas nos sovacos, beija neijo de índio e vira a narciana de um olho só. Elas colam perfil contra perfil e quedam horas assim, uma querendo ser a cara da outra. A menina diz "agora chega", pula para o chão, avança no cream cracker e por acaso nota a minha presença.(...)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Páginas Escolhidas





Oliveira Martins




O Império de Alexandre

A Orgia militar



Poucas individualidades haverá que representam mais a história do que Alexandre, e nenhuma que de um modo tão acabado venha consumar os destinos marcados pelas circunstâncias à vida de uma nação. Por isso a História viu sempre em Alexandre o primeiro dos seus heróis. A deslumbrante violência com que, rompendo as fronteiras da Grécia antiga, e alargando o Império Helénico pelo mundo então conhecido, satisfaz os inconscientes desejos dum pensamento já demasiado largo para os limites da anfictionia histórica; (...)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Histórias do Fundo da Noite






José Jorge Letria




Diálogo de Cegos




- Quando se eclipsa a luz dos nossos olhos, só  a luz interior nos ilumina.
- Essa luz, afinal, o que nos permite ver?
- Ensinou-me a experiência que nos permite ver a vileza dos homens e as catástrofes que ainda estão reservadas para a humanidade.
- Mas essa clarividência só a têm os poetas.
- Dizes isso porque ambos somos poetas.
- E também somos cegos, já agora.
(...)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Werther




Goethe





9 de Maio
Nunca peregrino algum visitou os santos lugares com mais devoção do que eu os lugares que me viram nascer, e não sentiu mais inesperadas sensações. Ao pé de uma grande tília que fica a um quarto de légua da cidade, mandei parar, desci da carruagem e disse ao cocheiro que continuasse, para eu próprio caminhar a pé e gozar a frescura e vivacidade de cada reminiscência. Parei ali, debaixo da tília que era na minha infância o termo dos meus passeios. Que mudança!