terça-feira, 23 de novembro de 2010

As Pequenas Memórias







José Saramago






À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naqueles lugares por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saido um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para sul, o Almonda, que é esse o nome do rio da minha terra, encontra-se com o Tejo, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alargar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do inverno(...)








quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Histórias de O






Pauline Reage





O apartamento onde Ó morava estava situado na Ilha Saint-Louis, no último andar de uma velha casa que dava para sul, virada para o Sena. Os aposentos da parte de trás eram águas-furtadas, amplos e baixos, e os da frente, que eram dois, abriam-se para varandas cavadas na inclinação do telhado. Um deles era o quarto de Ó, o outro, onde, do chão ao tecto, numa parede, prateleiras com livros enquadravam a lareira, servia de salão, de escritório, e mesmo de quarto se se quisesse: havia um grande divã diante das duas janelas e em frente da lareira uma grande mesa antiga.(...)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Este Pais Não é Para Velhos






Cormac McCarthy




(...)
A rua ainda estava vedada com fitas, mas não havia grande coisa para ver. A fachada do Hotel Eagle estava toda crivada de balas e havia cacos de vidro no passeio ao londo de ambos os lados da artéria. Os automóveis de pneus furados e vidros estilhaçados a tiro e com a chapa crivada de buracos, cada orifício orlado por um pequeno anel de aço sem pintura. O Cadillac fora rebocado e os cacos de vidro que cobriam o asfalto varridos para a berma e o sangue lavado com mangueiras.
Quem é que tu achas que estava no hotel?
(...)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Nove Semanas e Meia





Elizabeth McNeil




Ponho o cronómetro da cozinha para que toque dentro de meia hora. Serão então três da tarde, e submergir-me-ei na nova conta, uma grossa pasta que é preciso estudar. Planearei a minha estratégia. Enquanto isso, escreverei à máquina. Uma mulher contou-me o que tinha vivido com um homem o ano que passou a escrever o seu primeiro livro, e que ele, todas as noites, às onze em ponto, subia o volume da televisão e dizia:-Quando vais acabar de escrever à máquina?
Ela tornou-se perita em reconhecer o preciso instante em que tinha de parar, -entre as duas e três da manhã,- mesmo antes dele começar a atirar cadeiras, livros, garrafas.
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