sábado, 29 de setembro de 2007

O Azul Deserto da Tarde

(Prémio de Revelação de Ficção 1987 de A.P.E./I.P.L.L.)


Eunice Cabral


A rua está deserta às dez da noite. Podendo vê-la melhor com os passeios bordados de árvores novas, os candeeiros baixos e os vários carros estacionados, nada tem de deserto esta rua. Apenas a calma de uma artéria às dez da noite dum dia de semana.
(...)

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Mar Meu


Xanana Gusmão



Mar Meu
Pudesse eu
prender entre os dedos
os suspiros do mar
e distribui-los
ás crianças

Pudesse eu
acariciar com os dedos
A suave brisa das ondas
e sentir cabelos
de crianças

(...)

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O Juramento da Duquesa



Pinheiro Chagas




(...)
Em Castelo de Vide D.Nuno de Mascarenhas exercitou também os seus soldados em escaramuças com os Castelhanos. Entretanto Martim Afonso de Melo, o novo governador de armas, fortificava Estremoz, costumava os habitantes à vigilância e ao bom acordo, dando-lhes relatos falsos, e abastecia com os recursos de que dispunha, e que eram limitados, as praças da fronteira.
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quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A Casa do Incesto



Anais Nin



Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração. Existe um instrumento chamado quena que é feito de ossos humanos. Tem origem no culto que um índio dedicou à sua amante. Quando ela morreu ele fez dos seus ossos uma flauta. A quena tem um som mais penetrante, mais persistente do que a flauta vulgar. Aqueles que escrevem sabem o processo. Pensei nisto enquanto cuspia o coração. Só que eu não estou à espera da morte do meu amor.

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terça-feira, 25 de setembro de 2007

Os Pescadores




Raúl Brandão


(...)
De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É uma terra levantina que descubro; só lhe faltam os esguios minaretes. Duas cores e cheiro : branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho suspeito a cemitério. O fruto que chega a este estado está a dois dedos do apodrecimento, e é talvez por isso que a ideia do sepulcro me não larga nas noites brancas e pálidas em que me julgo perdido num vasto campo funerário...
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segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Quatro Prisões Debaixo de Armas




Vitorino Nemésio





O Matesinho de São Mateus era o maior gavola que a Vila da Praia tinha. Isto diziam certos pescadores, cheios de invejidade da sua fisga certeira. Por mim (escreve Mateus Queimado) nunca vi peito mais firme, dentes e riso mais abertos, bizarria maior a contar uma vida caipora, sim, mas mais divertida e rasgada que uma tarde detoiros cheia de fava torrada e de guiseiras luzidas.(...)

domingo, 23 de setembro de 2007

O Duelo


Bernardo Santareno



"Pela sua linguagem, que é bela sobretudo na boca de Rosária e Manuela, e pela sobriedade dos seus lances dramáticos, O DUELO, quanto a mim, é das peças de BERNARDO SANTARENO que, uma vez em cena, consagrarão definitivamente um dramaturgo já hoje, sem favor, dos mais altos expoentes da dramaturgia nacional."

JOÃO GASPAR SIMÕES
(in "Diário de Notícias")
(2ªEdição,Lisboa,1974)

sábado, 22 de setembro de 2007

As Estações do Rosto


José Jorge Letria

Prémio José Galeno de Poesia - 1984
da Sociedade Portuguesa de Autores



O Imperfeito Olhar



Vou perdendo a noção dos meses
o sentido da distância que entre eles
se ergue como uma fronteira de névoa.
Imagino que uma serpente atlântica,
em voo tangencial às águas, engole um poema de Poe,
uma flor maligna de Baudelaire,
um delírio nocturno de Rimbaud. Exausto
de referências, silencio o sonho
e os seus sentidos alucinantes, alcandorados
na torre mais alta e vertiginosa do sono.
Há dias em que não se pode sair com a poesia à rua (...)

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Vértice da Água




Artur Jorge








Como se subitamente dos amantes
fere-se nos lábios
a manhã

as folhas cortam o poema
sobre os pássaros
despenhados

(Não é de alegria o seu silêncio)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Ilhas


Sophia de Mello Breyner Andresen




Madrugada





Um leve tremos precede a madrugada
Quando mar e céu na mesma cor se azulam
E são mais claras as luzes dos barcos pescardores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O Livro do Desassossego



Bernardo Soares



(...)
O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção - a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento analítico. Toda a acção é, por natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir, e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.(...)

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O Paraíso do Esquecimento


Urs Widmer



Desde sempre admirei aqueles poetas frívolos que andavam despreocupadamente de metro ou organizavam orgias nas tabernas dos subúrbios com os manuscritos das suas obras primas, dos quais não tinham cópia. Evidentemente, deste modo os manuscritos desapareceiam, perdidos, depois de uma noite fria debaixo de lâmpadas fluorescentes de uma loja de sorvetes de Nova Iorque ou caídos do porta-bagagens da bicicleta, transporte dos poetas para casa, à primeira luz da madrugada - rodeados pelo chamamento dos cucos - saídos há pouco da cama de uma amante que agora dormitava, e à qual leram primeiro o livro todo, antes de partirem com ela a caminho de um céu, vedado a nós, mortais.(...)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Busca


José Fanha


Natureza Morta





Senhor Ministro
não se assuste
esteja à vontade
Viva a Liberdade!
eu fecho a porta.

Os artista desta terra
continuam a pintar
a natureza
morta.

domingo, 16 de setembro de 2007

O Sorriso aos Pés da Escada


Henry Miller


O Sorriso aos Pés da Escada foi escrito a pedido do pintor Fernand Léger. O compositor italiano Antonio Bilbalo compôs uma ópera a partir desta pequena e maravilhosa história do palhaço Augusto, que Miller classificou como a mais estranha das histórias que escrevera.


(...)
Um dia destes, falando com um pintor meu conhecido acerca das figuras que Seurat nos deixou, afirmei-lhe que elas se encontravam enraízadas ali mesmo onde eles lhes deu vida - na eternidade.
Como me sinto grato por ter vivido com estas figuras de Seurat - na "Grande Jarre", no "Médrano" e fosse onde fosse, em espírito! Não há absolutamente nada de ilusório à volta destas suas criações, cuja realidade é imperecível.
Vivem na luz do sol, na harmonia da forma e do ritmo que é melodia pura. E também, de facto, com os palhaços de Rounault, os anjos de Chagall, a escada e a lua de Miró, e todo o seu "zoo" ambulante. Assim também como Max Jacob, que nunca deixou de ser um palhaço - (...)

sábado, 15 de setembro de 2007

Até Amanhã



Eugénio de Andrade





"Juventude"




Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca. Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Ambas as Mãos Sobre o Corpo



Maria Teresa Horta


"Movimentos"





Apertei mais a tua mão presa na minha e senti-te subitamente longe. Dobrei mais ainda os dedos sobre os teus quase fincando as unhas, sentindo a pele quente, os dedos compridos, firmes, toda a tua mão como que todo o teu corpo. A saudade, a distância do teu corpo, a distância da tua mão ali na minha. O teu perfil recorta-se na quase total escuridão da sala. Desvio os olhos de ti e fixo-os no ecran brilhante, luminoso; o teu perfil persiste sobrepondo-se à rapariga que canta (...)
Subitamente distante encolho-me e sinto-me tão só que aperto mais os dedos sobre oe teus numa espécie de arrepio e torno-te a olhar o perfil correcto desenhado e frio na obscuridade da sala. Nos meus ombros a ausência do teu braço cria um vazio, uma ferida, uma cicatriz dolorosa. (...)

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O Vestido Cor de Fogo


José Régio



III


E começou entre nós aquele período que chamam namoro. Maria Eugénia era filha única dum oficial reformado e duma senhora que, parece-me, não recebera em solteira grande educação. A posição e as relações do marido lhe tinham dado certo verniz. Não era preciso muito mais para que D.Altina (tal o nome de minha futura sogra) fizesse no meio burguês que se tornara seu a figura decente de qualquer outra.(...)

Às vezes, pensava comigo: "Mas como sucedeu isto, assim tão depressa, porquê?" Na verdade bastara o meu encontro com ela para eu sentir que a queria minha, e ela me estava destinada. Vir a tê-la -era como recuperar alguém que já me pertencia. E em certos momentos me inquietava, ou quase me assustava, o que nisto havia de obscuro e poderoso.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Refúgio Perdido


Soeiro Pereira Gomes



Sem pousar a mala, esperou que o carro eléctrico se aproximasse. Sentia-se quase no fim daquela fase do trabalho, a mais arriscada, fremente de perigos. Que alívio,quando chegasse a casa!
Estava a suar, cansado e cheio de sede;mas procurou dar ao rosto uma expresssão jovial, como se dissesse às pessoas que estacionavam na paragem:"Que bela manhã, não é verdade? Não reparem na mala... Tem roupa e não pesa nada." As pessoas anotaram,decerto,que havia ali mais um concorrente aos lugares vagos no carro, e não repararam mais naquele moço franzino e mal vestido, cujos olhos brilhavam, inquietos, sob o chapéu derrubado.
(...)

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Sonetos Preversos



Joaquim Pessoa




Decerto sabes. De certos lábios
se aprende mais, talvez, a não falar.
É tolo escrever versos com os lábios
quando se pode, apenas, repirar.

Bom dia! Isto sim, é uma aresta
de qualquer verso a mais num telefonema.
As rugas são a pauta que há na testa
se ainda não é desta que o poema

irá morder a língua, irá calá-la
até que outra palavra se derrame
e possa transformar silêncio em fala.

Então, é ver a coisa mais infame:
o riso é como o estoiro de uma bala
e as palavras aplaudem o vexame.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Passagem de Fronteira


António Gomes Bonifácio

Hoje cumpro mais um aniversário e estou triste.Estou triste,porque coisas, fora do meu controlo, aconteceram sem uma explicação,sem uma "nota de culpa". Nada. Só "porque me apetece"(sic).
Assim, hoje, coloco aqui um apontamento de um livro não publicado em papel mas, eu sei, o autor não se importa: nem que seja aqui colocado, nem que não tenha sido publicado em papel.

NU


Eu estou nu
E me sinto nu.
Nu de ideias,
Nu de amizades,
Nu de tudo... Nu de tudo.
Eu estou nu
E me sinto nu.
Nu de crenças,
Nu de perspectivas,
Nu de tudo... Nu de tudo.
Deste ar que me envolve,
Desta areia,
Deste mar,
Desta vida.

domingo, 9 de setembro de 2007

As Intermitências da Morte



José Saramago




«No dia seguinte ninguém morreu».Assim começa este novo romance de José Saramago.Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.


domingo, 2 de setembro de 2007

Viagens na Minha Terra


Almeida Garrett



O Vale de Santarém é um destes lugares preveligiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego de espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência.


( ed.Sá da Costa,1954,pag 73 )